Avenue des Champs-Élysées
Paris, 1998
O inverno releva rachadura em meus lábios desidratados de amor. O trabalho sobrecarrega as minhas costas. Balanços bancários ao fim de cada expediente é um dever. Porém é preferível ter as costas doridas ao suportar o coração ferido. Distanciei-me propositadamente do amor. Ele ainda me assusta. Sentimentos profundos, ainda que verdadeiros, tendem a inquietar-me. Já várias vezes questionei-me a razão pela qual algumas pessoas apegam-se umas às outras. Perdoem a minha sinceridade, mas passei a ser conduzida pelas ambições pessoais. Tenho os meus sonhos como maior prioridade e com eles estou verdadeiramente comprometida. Devo encontrá-los e abraçá-los. Vejo nos humanos razões para não criar laços eternos. Eles magoam, traem-se, apunhalam-se pelas costas e, sem medo, são capazes de exibir sorrisos disfarçados. Sou fugitiva de uma paixão interrompida há quase um ano.
‘’Por mais quanto tempo esperas ficar no escritório?’’ - perguntou Rafael admirado. Ele tencionava partir, mas, como habitual, mostrou-se preocupado comigo. Rafael tem pele escura como cacau preto. Lábios minúsculos limitados por sua barba aparada. Tem a capacidade de articular palavras de forma sedutora. Não que ele faça uso de vocábulos requintados, mas fala como se quisesse perfumar suas ideias.
‘’Fico até terminar o balanço do dia. Como sabes, temos trabalhado na expansão do crédito. Tua atenção é incondicional’’ – retorqui com o olhar pensativo. Mal sabe ele que tenho a respiração noutro lugar, sobre outro corpo.
Meu apartamento cheira a cappuccino. Encontro aconchego no aroma do café. Porém, algumas vezes troco-o pelo chocolate quente porque o frio é arrebatador e tende a impulsionar-me de volta ao contacto que há muito evito. Cuidar das tulipas lembra-me da época em que a nossa paixão ainda era mediana. Ele procurava enfeitiçar-me com a fragrância e o tom denso da tulipa roxa. Não falávamos sobre planos futuros. Eu nunca acreditei na objectividade dos homens. Alguns usam palavras doces como subterfúgio para conseguir privilégios do corpo feminino. E, infelizmente, minha atmosfera tem inclinação à esse jogo malandro.
Eu e ele não pecámos de forma comum como aqueles que dizem, propositadamente, palavras insultuosas ao próximo para magoar a sua integridade. Tampouco pecámos como aqueles que quebram promessas, falhando assim às suas próprias palavras. Nós pecámos com a pele, com a malícia e o com o desejo incontrolável. Pecámos quando após o beijo terno as minhas mãos encontraram caminhos pelo teu corpo. Pecámos ao enfeitar frases simples com intenções que despertaram curiosidade e ânsia. Pecámos com olhares invasores, como se quiséssemos adivinhar a cor da roupa interior do outro. Houve malícia nos nossos sentimentos. Despimo-nos sem pudor com declarações nuas e sopros embebidos de ansiedade. Por trás de cada palavra, havia intenções de sequência. Se eu não o desenhei nos meus planos, se ele não tencionava ir adiante, porque soprámos ‘’eu te amo’’ em meio aos espasmos escaldantes?”
Fujo para não me tornar refém das memórias. Exijo de mim uma postura correcta que não denuncie a minha fraqueza. Tenho sede de nós. Não do quase amor vivido, mas dos desejos incontroláveis nunca evitados.
Este texto faz parte do projecto de Julho da página Biblioteca Amadora (instagram: bibliotecaamadora). Cidades, personagens, contos retratados.
Texto: anabungo || Fotografia: Flávio Cardoso (instagram: notflavio)