quinta-feira, 30 de julho de 2015

Luanda

Luanda (3)Imagem por Flávio Cardoso, obtida em Cidade de Luanda

Eu amo viajar. Conhecer pedaços desse enorme mundo. Apaixonar-me por farelos desses pedaços. E armazenar esse amor. Para ir aproveitando aos pouquinhos. Porque no fim dessas aventuras eu sempre volto para casa. A minha Luanda. A que a Djey chama de Banda.

Já andei um pouco por territórios estrangeiros. Até já declarei o meu amor por Tóquio e Barcelona. Mas Shinjuku e o Bairro Gótico não se comparam com a poeira da minha terra. Cientistas dessas universidades que tudo estudam ainda vão descobrir que ela faz milagres. E mesmo que eles não confirmem eu já tenho a certeza. Aqueles sorrisos que vejo no Rocha Pinto só podem ser prova disso. Porque os da Maianga e de Cacuaco são iguais.

Luanda, diferente de outras cidades, não é feita de lugares. Luanda é feita de pessoas. Luanda é a sua gente. Mesmo que não seja realmente sua. O ambulante que veio de Benguela. A mumuíla emprestada da Huíla. O taxista que nasceu no Zaire. O português que deixou a sua Lisboa. O pedreiro que saiu da sua China. E a avó que ainda fala o Umbundu do seu Huambo. Luanda são as crianças que brincam em ruas sem asfalto. São as madrinhas dos ambulantes. Luanda é o trânsito que começa antes do nascer do sol. As noitadas na Ilha. O ponto de vista do Miradouro da Lua e a da Fortaleza de São Miguel. Uma baixa que está a perder vestígios da história.

Luanda não é uma cidade. Não me interessa o que as formalidades dizem. Luanda é um estilo de vida. É um conjunto de gargalhadas que camuflam dor. Uma alegria tão contagiante que ganha os tratamentos psicológicos...

P.S: Luanda é tanto que para mim é um texto inacabado.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Barcelona

Barcelona

Está uma noite de calor abrasador. O meu quarto é agora um forno. E sempre que isso acontece lembro-me do meu amor de verão. De uma beleza incontestável, conquistou-me a primeira mirada. O meu coração batia descontrolado pela ansiedade de a conhecer. Quando saí do autocarro apeteceu-me largar a mala e correr. Absorvê-la na sua plenitude. E explorá-la infinitamente. Ela, uma beleza do Mediterrâneo. Ela que é bilingue. Ela que é a capital do Modernismo Catalão. Barcelona. Linda, histórica e interessante.

Foi amor à primeira vista. Ou antes disso. Eu já a amava antes de ver as linhas de Gaudí a centímetros dos meus olhos. E amei-a muito mais com a fruta fresca do La Boqueria. Mas amor não é só coisa boa. Todo mundo tem os seus defeitos. E o dela foi a Sagrada Família. Isso estremeceu a nossa relação. Mas nada que o Bairro Gótico e as Ramblas não consertassem. Nada que o Pavilhão de Barcelona não solidificasse. E solidificou tanto que tive saudades antes de partir. Passei a véspera da despedida a pensar em voltar. A engendrar planos para não ter de ir embora. E quando pensei que já nada havia a fazer. Que esse amor ia acabar naquele cálido verão de 2013. Que não passaríamos desse título de filmes românticos nas tardes de sábado. Eis que surge uma oportunidade. Não para ficar para sempre. Mas para voltar com certeza. Foi só beber da água da Font de Canaletes e esperar que ela cumprisse a sua promessa. Só a parte da minha volta, porque enamorada eu já estava.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Tóquio

Captura de ecrã total 21072015 010627.bmpImagem por Sandro Bisaro

Sabes do que é que me lembrei hoje? Daquela noite em que disseste que devíamos casar um dia desses. Nós. Ri-me tanto desse plano ridículo. Cheguei a pensar que estavas a falar a sério pela cara que fizeste. Até pedires-me para embarcar nessa viagem. Então decidi que se nos casássemos mudaríamo-nos para Tóquio. A cidade feita de cidades. Eu sei. Não precisas repetir que Tóquio não é cidade, é metrópole. Mas isso era só imaginação. Tóquio seria o que eu quisesse. E eu quis que fosse a nossa nova morada. Que nos recebesse nas suas infinitas ruas. E nos convidasse para um sake. Ou um buffet de sushi. Nesse ponto já não havia volta a dar. Tinha te convencido. Tóquio seria nossa. Com ou sem casamento.

E agora estou sentada nesse banco em Shinjuku. Sozinha. A ver o comboio veloz partir. E a realizar que ele muito se assemelha ao tempo. Ameaça parar. Mas nunca o faz verdadeiramente. Temos de ser rápidos para acompanhá-lo. Ou ficamos para trás. Como tu ficaste. E não vieste comigo ver a metrópole que te convidei a amar. Não viste a loucura que é o mercado de peixe. Perdeste a oportunidade de caminhar por Asakuza. Perdeste Tóquio. Perdeste-me.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Tulipa - De Ti Eu Fujo


Avenue des Champs-Élysées
Paris, 1998
O inverno releva rachadura em meus lábios desidratados de amor. O trabalho sobrecarrega as minhas costas. Balanços bancários ao fim de cada expediente é um dever. Porém é preferível ter as costas doridas ao suportar o coração ferido. Distanciei-me propositadamente do amor. Ele ainda me assusta. Sentimentos profundos, ainda que verdadeiros, tendem a inquietar-me. Já várias vezes questionei-me a razão pela qual algumas pessoas apegam-se umas às outras. Perdoem a minha sinceridade, mas passei a ser conduzida pelas ambições pessoais. Tenho os meus sonhos como maior prioridade e com eles estou verdadeiramente comprometida. Devo encontrá-los e abraçá-los. Vejo nos humanos razões para não criar laços eternos. Eles magoam, traem-se, apunhalam-se pelas costas e, sem medo, são capazes de exibir sorrisos disfarçados. Sou fugitiva de uma paixão interrompida há quase um ano.
‘’Por mais quanto tempo esperas ficar no escritório?’’ - perguntou Rafael admirado. Ele tencionava partir, mas, como habitual, mostrou-se preocupado comigo. Rafael tem pele escura como cacau preto. Lábios minúsculos limitados por sua barba aparada. Tem a capacidade de articular palavras de forma sedutora. Não que ele faça uso de vocábulos requintados, mas fala como se quisesse perfumar suas ideias.
‘’Fico até terminar o balanço do dia. Como sabes, temos trabalhado na expansão do crédito. Tua atenção é incondicional’’ – retorqui com o olhar pensativo. Mal sabe ele que tenho a respiração noutro lugar, sobre outro corpo.
Meu apartamento cheira a cappuccino. Encontro aconchego no aroma do café. Porém, algumas vezes troco-o pelo chocolate quente porque o frio é arrebatador e tende a impulsionar-me de volta ao contacto que há muito evito. Cuidar das tulipas lembra-me da época em que a nossa paixão ainda era mediana. Ele procurava enfeitiçar-me com a fragrância e o tom denso da tulipa roxa. Não falávamos sobre planos futuros. Eu nunca acreditei na objectividade dos homens. Alguns usam palavras doces como subterfúgio para conseguir privilégios do corpo feminino. E, infelizmente, minha atmosfera tem inclinação à esse jogo malandro.
Eu e ele não pecámos de forma comum como aqueles que dizem, propositadamente, palavras insultuosas ao próximo para magoar a sua integridade. Tampouco pecámos como aqueles que quebram promessas, falhando assim às suas próprias palavras. Nós pecámos com a pele, com a malícia e o com o desejo incontrolável. Pecámos quando após o beijo terno as minhas mãos encontraram caminhos pelo teu corpo. Pecámos ao enfeitar frases simples com intenções que despertaram curiosidade e ânsia. Pecámos com olhares invasores, como se quiséssemos adivinhar a cor da roupa interior do outro. Houve malícia nos nossos sentimentos. Despimo-nos sem pudor com declarações nuas e sopros embebidos de ansiedade. Por trás de cada palavra, havia intenções de sequência. Se eu não o desenhei nos meus planos, se ele não tencionava ir adiante, porque soprámos ‘’eu te amo’’ em meio aos espasmos escaldantes?”
Fujo para não me tornar refém das memórias. Exijo de mim uma postura correcta que não denuncie a minha fraqueza. Tenho sede de nós. Não do quase amor vivido, mas dos desejos incontroláveis nunca evitados.
Este texto faz parte do projecto de Julho da página Biblioteca Amadora (instagram: bibliotecaamadora). Cidades, personagens, contos retratados. 
Texto: anabungo || Fotografia: Flávio Cardoso (instagram: notflavio)